Terça-feira, Março 19, 2024
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BNDES financia mais o agro do que a indústria

O Banco foi criado na década de 1950 para alavancar o parque industrial brasileiro, a fim de não depender exclusivamente da agricultura, à época

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) foi criado pelo governo federal com a missão de alavancar o parque industrial brasileiro, mas hoje financia mais a agropecuária do que a indústria.

No ano passado, o banco estatal de fomento destinou 26% de seus recursos aos produtores rurais e 16% aos empresários industriais — respectivamente R$ 18 bilhões e R$ 11,2 bilhões em valores de hoje (corrigidos pela inflação).

Até algum tempo atrás, o BNDES gastava relativamente pouco com as atividades do campo. Em 2009, o agronegócio recebeu apenas 5% dos recursos enquanto a indústria ficou com 47% — R$ 14,6 bilhões e R$ 134,9 bilhões em valores atualizados.

A balança do BNDES pendeu para o lado da agropecuária pela primeira vez em 2018. Desde então, a indústria vem ficando cada vez mais para trás.

Especialistas em economia, industriais e senadores veem com preocupação a nova orientação do BNDES. Eles lembram que a indústria passa por dificuldades e o agronegócio já conta com os empréstimos do Banco do Brasil. O BNDES, por sua vez, argumenta que faz parte de sua missão atual apoiar as diversas estruturas produtivas do Brasil, inclusive a agropecuária.

O diplomata Rubens Ricupero, que foi ministro da Fazenda no governo Itamar Franco e secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), afirma:

— Eu não consigo compreender essa tendência. Getúlio Vargas criou o BNDES [em 1952] com o intuito de assegurar os investimentos necessários à indústria, que era e continua sendo o setor mais dinâmico, inovador e estratégico de qualquer economia. São financiamentos com juros baixos e prazos longos que os empresários [por causa dos riscos do negócio industrial] não conseguiam e ainda não conseguem obter nos bancos privados.

Os recursos do BNDES, oriundos principalmente do Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT), são limitados. Para que a agropecuária receba mais do banco, pelo menos um dos demais setores da economia (indústria, comércio, serviços e infraestrutura) necessariamente tem que receber menos.

— O agronegócio também precisa de financiamentos públicos, mas deveria obtê-los por mecanismos próprios e separados — continua Ricupero. — Além disso, por ser altamente rentável e gozar de preços em alta no comércio mundial, não enfrenta a mesma dificuldade da indústria e é capaz de obter empréstimos com facilidade no setor privado. O BNDES precisa retomar a vocação, da qual se desviou, de financiar o setor industrial.

Em 2017, o banco lançou o cartão BNDES Agro, exclusivo para fazendeiros. Em 2020, criou o programa BNDES Crédito Rural.

A guinada do banco em direção ao agronegócio ocorre num dos momentos mais críticos da indústria brasileira. Entre as empresas que fecharam as portas nos últimos tempos, estão multinacionais como a farmacêutica Eli Lilly, a fotográfica Nikon, as automobilísticas Ford e Mercedes-Benz e as eletrônicas Sony e Panasonic.

Funcionários protestam em 2021 contra o fechamento da fábrica da Ford em Taubaté. Foto: divulgação/Sindicato dos Metalúrgicos.

O cientista político José Alexandre Altahyde Hage, professor de relações internacionais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma:

— O nosso setor elétrico acabou. As fábricas de eletrodomésticos fecharam. Nas cidades do ABC Paulista, historicamente industriais, o que antes era fábrica agora é shopping center. As dificuldades se agravaram na pandemia. Mesmo assim, continuamos formando um número elevado de engenheiros, técnicos, químicos. A nossa indústria minguante não tem lugar para todos eles. Vamos jogá-los no campo?

O professor da Unifesp lembra que um dos estudos que embasaram a criação do BNDES em 1952 foi um detalhado raio X da economia brasileira feito pela Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, que apontou os gargalos da época e as respectivas soluções. Para ele, é necessário realizar hoje um trabalho técnico semelhante e, a partir dele, criar uma política de Estado.

— Não entendo como o governo pode negligenciar assim a indústria. No passado, tivemos líderes como João Paulo dos Reis Velloso e Mário Henrique Simonsen, ministros que entendiam o setor como estratégico para o Brasil. Não temos agora nenhum líder parecido. As próprias indústrias parecem ter aceitado a decadência e desistido de brigar.

De acordo com Hage, o desmonte do parque industrial brasileiro tem implicações graves:

— Muito do que era fabricado aqui passou a ser fabricado na China. Por falta de peças produzidas no exterior, carros ficaram parados nas nossas linhas de montagem, contribuindo com a disparada dos preços, e a nossa indústria naval não conseguiu entregar embarcações. Essa dependência da indústria externa é perigosa. É aquele barato que no fim sai caro. O Brasil, por não ter um parque industrial pujante, corre o risco de parar. Qualquer movimento da China é capaz de nos deixar de joelhos. O problema não é o BNDES dar apoio ao agronegócio. O problema é estar secando o apoio à indústria.

Cartão BNDES Agro, para produtores rurais, foi lançado em 2017. Imagem: Divulgação/BNDES.

A área industrial hoje responde por cerca de 20% do produto interno bruto (PIB) do país. Desde a criação do BNDES, a participação do setor na riqueza nacional nunca foi tão baixa. A indústria impulsionou o “milagre econômico brasileiro”, entre o fim dos anos 1960 e o início dos anos 1970, e chegou a contribuir com quase 50% do PIB.

A desindustrialização do Brasil, contudo, não é um processo recente. Após crescer vertiginosamente entre as décadas de 1950 e 1970, alavancado pelo Estado, o parque industrial começou a encolher na década de 1980, primeiro em razão de crises internacionais que afetaram a economia brasileira e depois por causa da adoção de políticas neoliberais, que retiraram investimentos públicos do setor econômico. A opção pela indústria seria retomada nos anos 2000, porém sem os mesmos resultados expressivos do passado.

A indústria é capaz de gerar mais riquezas do que o agronegócio. As fábricas exigem mais empregados do que o campo. A qualificação deles precisa ser mais alta, o que estimula a educação e eleva os salários. Esses pagamentos permitem que os trabalhadores consumam mais mercadorias e serviços, estimulando o setor produtivo e gerando receita tributária para o governo federal, os estados e os municípios.

Os produtos manufaturados têm maior valor agregado e geram mais inovação tecnológica do que os agrícolas. Ao mesmo tempo, cada indústria estimula uma série de outras cadeias produtivas e sustenta um grande número de empregos indiretos.

É por essa razão, por exemplo, que a China só aceita importar do Brasil a soja em grão. O país asiático não compra o óleo de soja brasileiro, porque o produto processado vale no mercado o dobro da soja in natura. De forma estratégia, os chineses mesmos transformam o grão no óleo.

Em 1776, nos primórdios do capitalismo industrial, o economista britânico Adam Smith já apontava no clássico livro A Riqueza das Nações a situação mais confortável dos países industriais diante dos países agrários.

A Grã-Bretanha consolidou-se como potência mundial entre o fim do século 18 e o início do século 19, logo após protagonizar a Revolução Industrial. No fim do século 19, também apoiados na industrialização, os Estados Unidos assumiram a hegemonia econômica. Foi a indústria que tirou países asiáticos como Japão, Singapura e Coreia do Sul do atraso econômico e social. A China deverá ocupar a liderança econômica global ainda nesta década, também graças à indústria.

— A agropecuária é necessária, mas não existe na história mundial país algum que tenha se desenvolvido contando apenas com ela — resume o economista Victor Leonardo de Araújo, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Funcionário trabalha na GE Celma, fábrica de turbinas de aviação em Petrópolis. Foto: José Paulo Lacerda.

O BNDES afirma que, ao apoiar o agronegócio, indiretamente apoia também a indústria. Em nota, o banco explica:

“A maior parte do crédito para o setor [do agronegócio] é destinada à aquisição de bens industriais, sobretudo tratores, colheitadeiras, máquinas e equipamentos para o processamento agroindustrial, o que, associado à política de conteúdo mínimo local, tem direcionado a demanda à indústria brasileira”.

A instituição nega que negligencie os investimentos diretos na indústria:

“Continuamos reconhecendo o papel estratégico da indústria. Dispomos de linhas e produtos que podem apoiar os investimentos das empresas industriais, desde projetos de inovação tecnológica até a ampliação da capacidade produtiva, passando pela descarbonização”.

De acordo com o BNDES, o agronegócio vem obtendo mais recursos do que a indústria como consequência da recente valorização do real frente ao dólar, que incentivou as exportações de produtos agropecuários e desestimulou as importações, motivando o setor a buscar dinheiro para a ampliação da capacidade produtiva.

O banco diz que financia desde os produtores rurais familiares até os empresariais, mas que o maior volume de recursos vai para empresas agropecuárias de médio e pequeno porte, não para as gigantes do agronegócio.

Juscelino Kubitschek e Getúlio Vargas na década de 1950, incentivadores da indústria. Foto: FGV.

O economista André Redivo, professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), explica que o tímido financiamento destinado pelo BNDES à indústria nos últimos anos não provém de desinteresse dos empresários. Ao contrário, a procura pelo banco estatal é alta.

Os industriais solicitaram no ano passado R$ 37,4 bilhões em valores atualizados, mas o BNDES liberou R$ 11,2 bilhões (30%). Os produtores rurais, por sua vez, pediram R$ 22,5 bilhões e conseguiram R$ 18 bilhões (80%).

— O setor industrial busca os recursos, mas não os encontra. O que se depreende disso é que houve uma reorientação da política econômica do governo em direção ao agronegócio — analisa Redivo. — Isso é um fato novo na história do banco. Até meados da década passada, o governo encarava a indústria como um setor estruturante da economia. Atualmente, não a vê como primordial. Eu discordo dessa visão.

Para o economista Paulo Kliass, gestor federal especialista em políticas públicas, o Brasil adota hoje uma política econômica atrasada, que ele chama de “neocolonial”:

— Estamos voltando aos tempos da Colônia, do Império e da República do Café com Leite, quando vendíamos ao mundo apenas itens agrícolas, pecuários e minerais, de baixíssimo valor agregado, e comprávamos somente produtos manufaturados, muito mais valorizados. É um contrassenso fazer isso em pleno século 21, deixar de financiar o futuro para financiar o passado. Já fomos a sexta maior economia do planeta, agora somos a décima e tendemos a continuar rolando ladeira abaixo. Getúlio Vargas deve estar se revirando no túmulo.

Kliass lembra que os países desenvolvidos também dão apoio à agropecuária e passam por desindustrialização, mas esclarece que o processo deles é diferente do brasileiro:

— Os Estados Unidos e a Europa protegem o setor agropecuário mais por uma questão de reconhecimento histórico do que de estratégia econômica. No caso da desindustrialização nesses países, as fábricas tradicionais que são fechadas e transferidas a outros países dão lugar a indústrias de tecnologia de ponta e serviços de alto valor. A população e a economia lucram com a mudança. No Brasil, quando as fábricas fecham, às pessoas resta buscar serviço em setores que pouco agregam à economia nacional, como o de telemarketing, e que oferecem condições precárias de trabalho, como o de aplicativos de transporte ou entrega de comida.

Para a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), as fábricas poderiam se beneficiar se o Ministério da Indústria fosse restabelecido.

— É sempre positivo quando existe um interlocutor específico para o setor — afirma o economista-chefe da Fiesp, Igor Rocha. — Isso também ajudaria a superar outros problemas que contribuem com a desindustrialização, como a nossa estrutura disfuncional de tributos, que desestimula a produção nacional e incentiva a importação de itens de maior valor agregado. O Brasil tem uma política agrícola clara, o que é compreensível, mas não tem nenhum plano estrutural para a indústria, o que vai na contramão do restante do mundo.

Reportagem: Ricardo Westin/Agência Senado

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